O que uma eleição mostra é um rearranjo de forças.
O conflito permanece. E tem que permanecer
A tendência
a concentrar nossa experiência democrática nos períodos eleitorais fez muito
mal à cidadania brasileira. A cada pleito, a disputa parece se concentrar entre
dois nomes e, escolhido um deles, a democracia se instala, o título de eleitor
vai para o fundo da gaveta e a consciência de participação ganha um afago,
ainda que muitas vezes constrangido: “Pelo menos fiz a minha parte”.
A política continua depois das eleições |
Essa
história, tantas vezes repetida, costuma ser seguida de avaliações de
conjuntura ou conversas de bar, que tentam decifrar o que pensa “o brasileiro”,
por que escolheu fulano, o que isso significa a curto e médio prazos e por aí
vai. Não é incomum que o julgamento que põe fim à discussão pontifique que se
trata de uma escolha democrática e que, ao derrotado, só cabe aceitar.
A eleição
ainda nem chegou e, em todo o Brasil, já começam a se traçar os passos
seguintes e a se rever as estratégias mais bem-sucedidas. A cada eleição cai um
mito (seja o da polarização entre os grandes partidos, acerca do papel dos
meios de comunicação, relativos à força da religião, entre outros) e novos
engenheiros de obras prontas saem em cena para explicar o que lhes escapou
durante todo do processo. Como naquela anedota do Garrincha, os russos não
foram avisados.
O que parece
fundamentar esse jogo de equívocos é a concepção autoritária de democracia que
é exercida no Brasil. Democracia, para nós, parece ser o ponto de chegada, a
síntese inquestionável da vontade popular expressa livremente, e não um
processo dinâmico alimentado pela discordância. É preciso reformar nossa
ilusão: democracia não é paz, é conflito. O que uma eleição mostra é um
rearranjo de forças. O conflito permanece. E tem que permanecer.
Não se trata
de invalidar o resultado eleitoral, mas compreendê-lo em sua dinâmica e história.
Só haveria condição de pacificação absoluta num cenário onde as diferenças não
são fundantes. É fácil entender que as divergências não apenas permanecem, mas
é fundamental que não desapareçam, quando se trata, por exemplo, de valores
ligados aos direitos humanos e ao exercício das liberdades individuais. A
vitória de um candidato moralista, defensor da pena de morte e homofóbico não
significa um aval dado pela sociedade para exercício de tantas ignomínias.
A
perspectiva de um olhar totalizante sobre o social só é concebível a partir do
autoritarismo. Apenas a mão pesada da ditadura é capaz de se valer de
instrumentos antidemocráticos como se agisse em nome de um valor maior,
indistinto. Ao clamar por ações que calem a diferença e anulem a dimensão de
conflito que constitui a democracia, o que se estabelece são condições de
possibilidade do arbítrio.
Freud
explica? Um pouco de psicologia para engrossar o caldo da política. O
brasileiro, como todo povo (pelo menos desde Freud), sabe que sua identidade é
conquistada num misto de uma formação imaginária sociocultural unificadora e da
vivência de certas particularidades, um “narcismo das pequenas diferenças”.
Somos brasileiros no que temos em comum, sem castrar o que nos diferencia e nos
associa a pequenas parcelas de identidade. Somos, sem conflito, “eu” e “nós”. A
diferença está na raiz da identidade.
No entanto,
no caso brasileiro, a convivência com o outro do outro tem sido quase sempre
uma operação de preconceito e cisão. Nos achamos mais iguais que os outros.
A
conseqüência dessa operação tem sido não apenas a separação, mas a
desumanização do próximo. Convivemos com um pacto narcísico que é profundamente
discriminador e autoritário. O descrédito com as leis, a consciência infeliz
que aponta que a Justiça não atinge os ricos, a insensibilidade à miséria, a
tendência a criminalizar a questão social (o medo que a classe média tem dos
pobres e pretos), o senso de privilégio (e a recusa de aceitar a discussão
sobre as ações afirmativas), o desconforto de compartilhar espaços públicos
(shoppings, praças e aeroportos), tudo isso configura o cenário colonial em que
vivemos. O que é bom para parte da sociedade não é necessariamente bom para
todos.
O “nós” que
ganha elocução nos canais de afirmação da opinião pública (sobretudo pelos
meios de comunicação) é autoritário, discriminador, egoísta, despolitizado,
elitista e pouco solidário. A tradução tem sido a desresponsabilização com as
ações que precisam ser construídas coletivamente, como a questão do consumo, do
meio ambiente e do trânsito, por exemplo. Na lógica parcelar da identidade
brasileira, metrô é solução para os pobres (ou alguém acha que os ricos vão
deixar de circular com seus carros e usar o trem?), segurança é construir
barreiras sociais e inibir a circulação e a manifestação livre das pessoas nas
ruas e praças.
A própria
avaliação das leis ganha viés narcísico. Aceitamos como dado imutável que o
salário mínimo não seja suficiente para dar conta da manutenção digna de uma
família, como está determinado na Constituição, como se se tratasse de um
excesso humanista pouco prático. No entanto, quando se pisa no calo de um
consumidor que tem sua viagem atrasada em algumas horas, há uma verdadeira
revolta cívica televisonada de hora em hora (nesse jogo repetitivo do
jornalismo autorreferido que sublinha as convicções de classe que armam a
identidade dos verdadeiros “brasileiros”). As leis que precisam “pegar” são as
menos amplas e que retratam quase sempre relações de consumo.
Três
momentos - O que Freud explica bem, nosso senso de política muitas vezes deixa
passar batido. É preciso, se queremos viver uma democracia digna desse nome,
ampliar a garantia do pluralismo de interesses que fundamenta nosso projeto de
nação. Só um alargamento real do que se chama povo brasileiro (e não essa
separação entre um povo que vale a pena e outro que estorva) pode admitir a
afirmação de valores que sejam árbitros de decisões políticas responsáveis. E,
é claro, sempre a partir da possibilidade de conflito e dissidência. As opções,
na verdade, não são muitas: ou democracia de verdade ou aristocracia disfarçada
na defesa de interesses de mercado e poder. Ou, o que é pior, a vindicação
surda pela volta da tirania.
O processo
eleitoral que estamos vivendo tem por isso três tempos. Começou com o jogo de
alianças que definiu os candidatos e as propostas. No segundo momento, será
marcado pelo resultado das urnas. No instante seguinte, pela rearticulação das
forças e dos projetos. O mais político dos estágios é, sem dúvida, o terceiro.
É com o fim da eleição que a democracia, e tudo que ela significa, exerce seu
inescapável dever de estabelecer as condições de conflito e debate. Como na
piada do regime para emagrecer, o período mais importante é o que vai do
réveillon ao Natal do ano seguinte. As festas são ótimas e simbólicas, mas
passageiras.
Algumas
manifestações correntes nessa campanha já deixam sinais importantes. Houve uma
proliferação de movimentos ativos, mas pré-políticos, incapazes de estabelecer
laços mais ampliados de solidariedade social com outras lutas já estabelecidas.
O que trouxeram de leveza e criatividade deixaram de conquistar em
consistência. Outro aspecto foi a perda de poder do horário de TV (que custa
tantos acordos detestáveis) e dos debates entre candidatos (já lidos pelo
eleitor como arma de marketing e não como discussão de ideias) em favor de
novas formas de circulação de informação. Por fim, a desvalorização das
demandas urbanas pontuais em nome de projetos políticos posteriores em outras
esferas de poder. São sinais novos e antigos que precisam ser interpretados
pelos cidadãos. É mais uma tarefa que fica para o terceiro turno.
JOÃO PAULO CUNHA é Editor de Cultura
no jornal Estado de Minas e publica sua coluna no Caderno Pensar todos os
sábados
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