sábado, 6 de outubro de 2012

Depois da eleição

Por João Paulo, publicado no jornal Estado de Minas de 22/09/2012
O que uma eleição mostra é um rearranjo de forças. O conflito permanece. E tem que permanecer
A tendência a concentrar nossa experiência democrática nos períodos eleitorais fez muito mal à cidadania brasileira. A cada pleito, a disputa parece se concentrar entre dois nomes e, escolhido um deles, a democracia se instala, o título de eleitor vai para o fundo da gaveta e a consciência de participação ganha um afago, ainda que muitas vezes constrangido: “Pelo menos fiz a minha parte”. 
A política continua depois das eleições
Essa história, tantas vezes repetida, costuma ser seguida de avaliações de conjuntura ou conversas de bar, que tentam decifrar o que pensa “o brasileiro”, por que escolheu fulano, o que isso significa a curto e médio prazos e por aí vai. Não é incomum que o julgamento que põe fim à discussão pontifique que se trata de uma escolha democrática e que, ao derrotado, só cabe aceitar.

A eleição ainda nem chegou e, em todo o Brasil, já começam a se traçar os passos seguintes e a se rever as estratégias mais bem-sucedidas. A cada eleição cai um mito (seja o da polarização entre os grandes partidos, acerca do papel dos meios de comunicação, relativos à força da religião, entre outros) e novos engenheiros de obras prontas saem em cena para explicar o que lhes escapou durante todo do processo. Como naquela anedota do Garrincha, os russos não foram avisados.
O que parece fundamentar esse jogo de equívocos é a concepção autoritária de democracia que é exercida no Brasil. Democracia, para nós, parece ser o ponto de chegada, a síntese inquestionável da vontade popular expressa livremente, e não um processo dinâmico alimentado pela discordância. É preciso reformar nossa ilusão: democracia não é paz, é conflito. O que uma eleição mostra é um rearranjo de forças. O conflito permanece. E tem que permanecer.
Não se trata de invalidar o resultado eleitoral, mas compreendê-lo em sua dinâmica e história. Só haveria condição de pacificação absoluta num cenário onde as diferenças não são fundantes. É fácil entender que as divergências não apenas permanecem, mas é fundamental que não desapareçam, quando se trata, por exemplo, de valores ligados aos direitos humanos e ao exercício das liberdades individuais. A vitória de um candidato moralista, defensor da pena de morte e homofóbico não significa um aval dado pela sociedade para exercício de tantas ignomínias. 
A perspectiva de um olhar totalizante sobre o social só é concebível a partir do autoritarismo. Apenas a mão pesada da ditadura é capaz de se valer de instrumentos antidemocráticos como se agisse em nome de um valor maior, indistinto. Ao clamar por ações que calem a diferença e anulem a dimensão de conflito que constitui a democracia, o que se estabelece são condições de possibilidade do arbítrio.
Freud explica? Um pouco de psicologia para engrossar o caldo da política. O brasileiro, como todo povo (pelo menos desde Freud), sabe que sua identidade é conquistada num misto de uma formação imaginária sociocultural unificadora e da vivência de certas particularidades, um “narcismo das pequenas diferenças”. Somos brasileiros no que temos em comum, sem castrar o que nos diferencia e nos associa a pequenas parcelas de identidade. Somos, sem conflito, “eu” e “nós”. A diferença está na raiz da identidade.
No entanto, no caso brasileiro, a convivência com o outro do outro tem sido quase sempre uma operação de preconceito e cisão. Nos achamos mais iguais que os outros.
A conseqüência dessa operação tem sido não apenas a separação, mas a desumanização do próximo. Convivemos com um pacto narcísico que é profundamente discriminador e autoritário. O descrédito com as leis, a consciência infeliz que aponta que a Justiça não atinge os ricos, a insensibilidade à miséria, a tendência a criminalizar a questão social (o medo que a classe média tem dos pobres e pretos), o senso de privilégio (e a recusa de aceitar a discussão sobre as ações afirmativas), o desconforto de compartilhar espaços públicos (shoppings, praças e aeroportos), tudo isso configura o cenário colonial em que vivemos. O que é bom para parte da sociedade não é necessariamente bom para todos.
O “nós” que ganha elocução nos canais de afirmação da opinião pública (sobretudo pelos meios de comunicação) é autoritário, discriminador, egoísta, despolitizado, elitista e pouco solidário. A tradução tem sido a desresponsabilização com as ações que precisam ser construídas coletivamente, como a questão do consumo, do meio ambiente e do trânsito, por exemplo. Na lógica parcelar da identidade brasileira, metrô é solução para os pobres (ou alguém acha que os ricos vão deixar de circular com seus carros e usar o trem?), segurança é construir barreiras sociais e inibir a circulação e a manifestação livre das pessoas nas ruas e praças.
A própria avaliação das leis ganha viés narcísico. Aceitamos como dado imutável que o salário mínimo não seja suficiente para dar conta da manutenção digna de uma família, como está determinado na Constituição, como se se tratasse de um excesso humanista pouco prático. No entanto, quando se pisa no calo de um consumidor que tem sua viagem atrasada em algumas horas, há uma verdadeira revolta cívica televisonada de hora em hora (nesse jogo repetitivo do jornalismo autorreferido que sublinha as convicções de classe que armam a identidade dos verdadeiros “brasileiros”). As leis que precisam “pegar” são as menos amplas e que retratam quase sempre relações de consumo.
Três momentos - O que Freud explica bem, nosso senso de política muitas vezes deixa passar batido. É preciso, se queremos viver uma democracia digna desse nome, ampliar a garantia do pluralismo de interesses que fundamenta nosso projeto de nação. Só um alargamento real do que se chama povo brasileiro (e não essa separação entre um povo que vale a pena e outro que estorva) pode admitir a afirmação de valores que sejam árbitros de decisões políticas responsáveis. E, é claro, sempre a partir da possibilidade de conflito e dissidência. As opções, na verdade, não são muitas: ou democracia de verdade ou aristocracia disfarçada na defesa de interesses de mercado e poder. Ou, o que é pior, a vindicação surda pela volta da tirania.
O processo eleitoral que estamos vivendo tem por isso três tempos. Começou com o jogo de alianças que definiu os candidatos e as propostas. No segundo momento, será marcado pelo resultado das urnas. No instante seguinte, pela rearticulação das forças e dos projetos. O mais político dos estágios é, sem dúvida, o terceiro. É com o fim da eleição que a democracia, e tudo que ela significa, exerce seu inescapável dever de estabelecer as condições de conflito e debate. Como na piada do regime para emagrecer, o período mais importante é o que vai do réveillon ao Natal do ano seguinte. As festas são ótimas e simbólicas, mas passageiras.
Algumas manifestações correntes nessa campanha já deixam sinais importantes. Houve uma proliferação de movimentos ativos, mas pré-políticos, incapazes de estabelecer laços mais ampliados de solidariedade social com outras lutas já estabelecidas. O que trouxeram de leveza e criatividade deixaram de conquistar em consistência. Outro aspecto foi a perda de poder do horário de TV (que custa tantos acordos detestáveis) e dos debates entre candidatos (já lidos pelo eleitor como arma de marketing e não como discussão de ideias) em favor de novas formas de circulação de informação. Por fim, a desvalorização das demandas urbanas pontuais em nome de projetos políticos posteriores em outras esferas de poder. São sinais novos e antigos que precisam ser interpretados pelos cidadãos. É mais uma tarefa que fica para o terceiro turno.

JOÃO PAULO CUNHA é Editor de Cultura no jornal Estado de Minas e publica sua coluna no Caderno Pensar todos os sábados

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